Este Blog foi um programa de rádio The Steadfast Tin Soldier: A apanha da azeitona

quinta-feira, novembro 27, 2008

 

A apanha da azeitona

O senhor Cunha era dono de extensos olivais em terras transmontanas. A saber, tinha mais de cem homens e mulheres que, todos os anos, no tempo da apanha da azeitona, se aplicavam diligentemente na recolha daqueles negros frutos da oliveira.
Violentando virilmente com varas de marmeleiro os ramos das verdes árvores, imponentes e relativamente altas para aquilo que uma oliveira costuma ser, as azeitonas caíam do meio daquelas folhas verde-escuras para um pano que, cá em baixo, sete mãos seguravam - duas femininas e alvas mãos em cada canto excepto num, onde estava o Zé Maneta (de seu apelido, ironicamente, Completo) que, por razões óbvias, era conhecido por tal alcunha onde quer que fosse. Outras sete mãos varejavam a árvore até que as azeitonas chovessem cá para baixo - outras sete, pois o Manel do Lagar era conhecido também como "o três mãos", tal era o vigor e a velocidade com que vergastava os ramos e enorme a quantidade de azeitona que caía a pique como caganitas de celeste caprino gado recém-curado de prisão de ventre. Era conhecido por ir de terra em terra bater tudo quanto era ramo de oliveira onde se achasse nem que uma só azeitona. Conhecido era também por ser exímio puxador no jogo do pau, habilidade essa que já por algumas vezes lhe valera para resolver rixas na terra, a mais célebre delas com o Chico Manco. Figura disforme, muito curto de pernas e de cabeça larga, o Chico Manco ganhou o nome por, quando andava o Manel na azeitona, lhe ter ido à mulher, que berrou o nome do seu homem, chegando aquele de vara na mão. Olhando o Chico, malandrão, fez-lhe da tola azeitona pela rua fora, até um barranco, onde o Chico cai, rebola e ganha alcunha: Chico Manco.
Ora tinha este ano o senhor Cunha muita azeitona, em demasia para o seu lagar, e prometeu duas vasilhas daquele a quem lhe achasse um outro lagareiro, competente e despachado, que lhe aliviasse a tarefa. Mais, prometia-lhe um lindo chapéu de feltro, de aba larga, de belíssima qualidade, que o pai de sua mulher lhe deu um dia e era "uma das mais belas coisas que o meu querido sogro - que Deus o tenha em descanso - me ofereceu", exagerava junto aos amigos, mas estava mortinho por se livrar daquela bodega que não usara nunca, "tão preciosíssimo que é..."
O Manel do Lagar, ouvindo a nova, correu a casa do senhor Cunha oferecendo os seus préstimos, pois tinha fama de bom e honesto lagareiro. Correu igualmente o Chico Manco, que tinha também um lagar que funcionava de vez em quando, quando lhe não dava a preguiça e não tinha ideias adúlteras a cruzar-lhe o pensamento, e que viu aqui boa oportunidade para ganhar duas vasilhas de azeite e chapéu com que tapar a cabeçorra de que tanto se envergonhava. Para mais, sempre fora amigo do Segisfredo Cunha, filho primogénito do patrão da terra...
O Manel explicou respeitosamente ao senhor Cunha quão doirado saía o azeite das olivas que entravam no seu lagar, explicou-lhe como ninguém mais, desde o Tabuaço a Vimioso, fazia azeite como o seu, explicou-lhe quão saboroso ficava o pão que, acabado de sair do forno, era regado com um fino fio daquele oiro líquido do seu lagar...
Mas o patrão fez ouvidos moucos e quem recebeu as duas vasilhas foi o Chico, que agradeceu espalhafatosamente a Segisfredo a sua amizade verdadeira e, em segredo, ao senhor Cunha, pela preferência e pelo reconhecimento do seu valor - o valor de guardar o segredo de quais as moças da terra que ocupavam o lugar da senhora Cunha de quando em vez... E agradeceu-se a si próprio a esperteza de ganhar duas vasilhas de azeite. O chapéu, esse, era outra história... O pai da senhora Cunha, homem alto e elegante, era um ser proporcional, e a sua cabeça não era comparação com o tubérculo inchado que o Chico Manco ostentava sobre os ombros. E, para mal dos seus pecados, o chapéu que tanto cobiçara e com o qual pretendera esconder o seu disforme crânio não lhe servia. Mas haveria de lhe dar bom uso...
Olhando para o seu interior, viu uma etiqueta cosida no forro. Analfabeto, não sabia ler - e sabia que o Manel do Lagar era igualmente iletrado... Então decide vingar-se da sua condição de côxo e, no dia seguinte, dirige-se ao Manel e diz-lhe "Olha, o senhor Cunha manda dizer que este chapéu é para ti, e diz lá dentro que to oferece com muita estima, e que o teu lagar fica para a próxima..."
O Manel do Lagar, que era bruto mas não era burro, perguntou ao padre o que dizia na etiqueta. "J. Gomes de Pinho, São João da Madeira, Fábrica de Chapéus". Sabendo o Manel a vergonha que o Chico Manco tinha da sua cabeça, pediu ao padre que lhe escrevesse um papel que, nessa mesma noite, foi pregar na porta do Chico Manco.
Um pouco depois de cantar o galo e o sol se levantar o Chico Manco abriu a porta. Lá pregado estava o chapéu, rasgado dos lados para que coubesse em maiores cabeças, e um papel. O Chico Manco não sabia ler, mas veio-se a saber por portas e travessas o que o papel dizia:
"A quem ler isto, que lhe sirva a carapuça..."

Comments:
Imagino que essa gente tivesse muitas epistaxis.
 
Depois tens de me contar aonde vais buscar tamanha inspiração...
 
Como em tudo, na vida conhecem-se muitos Chico Manco e Srs.Cunha. E, são os Chico Manco que se vão safando, ganhando 2 vasilhas de azeite ora aqui, ora ali, valendo-se dos méritos do amigo Sr Cunha. Quanto ao chapéu, a carapuça servirá a muitos mas, nem sempre os Chico Manco deste mundo conseguem perceber que a carapuça seja para eles, nem que ela lhes assente que nem uma luva e lhes seja pregada na sua própria porta. Agora, o que por vezes faz falta é mesmo uma valente varejadela, não para cairem as azeitonas mas para limpar as árvores das folhas parasitas que por lá se encontram, quase mortas mas, a sugar a seiva ainda.
O que andas a tomar? O teu cérebro anda a fervilhar de ideias, de imaginação. Deve ser do frio...
 
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