Este Blog foi um programa de rádio The Steadfast Tin Soldier: Mas foi nele que espelhou o céu...

sexta-feira, agosto 22, 2008

 

Mas foi nele que espelhou o céu...

Mais de dois anos após penetrar o imenso azul pela última vez, tirei o pó (e alguns restos de areia) ao fato e às barbatanas, lavei a máscara, limpei a ferrugem do punhal e voltei a mergulhar. Destreinado, os ouvidos ressentem-se da falta da prática e os pulmões não aguentam mais de 1m40s, metade do que conseguia há 5 anos atrás... O fato, esse, fica-me apertado. Parece mais pequeno - ou fui eu que "cresci"?
De tudo o que fiz até agora na minha vida, poucas coisas me dão mais tranquilidade - e, ao mesmo tempo, mais pica - do que mergulhar. Com calma e tranquilidade, a apreciar uma paisagem subaquática junto à praia com areia a perder-se na imensidão do azul, pequenas linhas onduladas marcadas na areia e, aqui ou ali, uma ponta de rocha que sai para fora. Ou então numa perigosa mistura de adrenalina e diversão no meio de muralhas de rocha, autênticos castelos subaquáticos cheios de túneis, poços e estreitas passagens que a flora submarina convida a arriscar atravessar, com seus movimentos ondulantes, braços coloridos que nascem das rochas.
Já há três anos que troquei a pistola pela máquina fotográfica depois da desilusão de, após dias seguidos de tentativas e várias horas no mar, não trazer para terra, no final, mais do que um peixe do tamanho da palma da minha mão, esfrangalhado na ponta de um arpão amolgado de tanto acertar nas rochas. Aliás, não o trouxe sequer para terra: ficou por lá, cemitério natural e lugar indicado para contribuir para a cadeia alimentar e fazer com que outros peixes se alimentem dele, cresçam e, um dia, outros com maior engenho e arte o possam pescar. Assim, ficou também algures ao largo de Sesimbra, agora já batida pelas ondas e coberta pela areia, a minha vergonha e frustração de não ter herdado os valores ancestrais dos humanos primitivos no que toca ao instinto animal de caça e sobrevivência. Mas não me importo muito com isso. Em casa, a um canto, tenho ainda as duas pistolas de tridentes tortos e elásticos já ressequidos, a apanhar pó e ferrugem. E também não me importo muito com isso. Agora, de máquina fotográfica em punho, as minhas visitas aos jardins de Poseidon são muito mais interessantes. Isto quando me lembro de a levar... Mesmo sem essa engenhoca dos momentos Kodak para mais tarde recordar, os passeios pelo fundo do mar não deixam de ser interessantes - se calhar até mais, já que não sinto aquele peso da quase-obrigação de tirar fotografias e aproveito para contemplar melhor o que me rodeia.
Debaixo do Sol dourado e exposto ao sopro transparente do vento, entre branco-de-espuma e prateado-peixe, o meu dia de hoje pintou-se em tons de azul e verde.

Como todos os seres humanos, nascemos no coração da mãe-terra. Temos braços e pernas, respiramos oxigénio que entra em pequenos pulmões. Passamos grande parte da nossa vida na posição vertical que nos dá uma maior autonomia e conforto na terra. Vistos superficialmente somos iguais a todos os seres humanos.
Mas, analisando um pouco mais a fundo, alguma coisa coisa nos faz diferentes. Nascemos com os olhos acostumados ao azul das águas. Temos um corpo que anseia pelo braço do mar e um pulmão que aceita grandes privações de ar apenas para prolongar a nossa vida no mundo azul.
Somos homens e mulheres de espírito inquieto. Procuramos na nossa vida mais do que nos foi dado. Passamos por grandes provas para nos aproximarmos dos peixes. Transformamos os nossos pés em grandes barbatanas, seguramos o calor do nosso corpo com peles falsas e chegamos até a levar um novo pulmão às costas. E tudo isto para quê? Para podermos satisfazer uma paixão, um sonho. Porque nós, algum dia, de alguma forma, fomos apresentados a um mundo novo. Um mundo de silêncio, calma, mistério, respeito e amizade. E esta calma e silêncio fizeram-nos esquecer da confusão e da agitação do nosso mundo natal. O mistério evolveu o nosso coração sedento de aventura.
O respeito que aprendemos a ter pelos verdadeiros habitantes desse mundo. Respeito esse que, só depois de ter sentido a inocência de um peixe, a inteligência de um golfinho, a majestade de uma baleia ou mesmo a força de um tubarão, podemos compreender.
E a amizade. Quando vamos até ao fundo do mar, descobrimos que ali jamais poderíamos viver sozinhos. Então levamos mais alguém. E esta pessoa, chamada de dupla, companheiro ou simplesmente amigo, passa a ser importante para nós. Porque, além de nos poder salvar a vida, passa a compartilhar tudo o que vemos e sentimos. E em duplas, passamos a ter equipas, e estas passam a ser cada vez maiores e mais unidas. E assim entendemos que somos todos velhos amigos mesmo que não nos conheçamos. E esse elo que nos une é maios que todos os outros que já encontrámos.
E isso faz com que nós, mais do que amigos, sejamos irmãos.
Faz de nós mergulhadores.

Jacques Yves Cousteau, Carta aos Mergulhadores

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