Este Blog foi um programa de rádio The Steadfast Tin Soldier: Obsessivo e compulsivo

quinta-feira, janeiro 03, 2008

 

Obsessivo e compulsivo

Fernando abriu os olhos. Levantou-se e caminhou sonolentamente para o duche ao mesmo tempo que esfregava a polpa dos dedos contra cada mão; indicador, médio, anelar e mindinho pressionando e arrastando-se na palma da mão, do mais afastado da palma para o mais perto das falanges possível, e os polegares na dobra da segunda falange do indicador. À vez, primeiro os quatro dedos, depois o polegar. Uma. Duas. Três. Quatro vezes os quatro dedos, e uma duas três quatro vezes o polegar. Número par. Com a ponta do indicador empurrou a pele que se debruça sobre a unha do polegar, quatro vezes, “para compensar” a pressão que tinha feito antes. Debruçou, em cada mão, o dedo já saciado sobre as unhas dos outros quatro e empurrou também a pele no sentido da unha, para compensar. Quatro vezes. Apostou consigo próprio que, antes de chegar à casa de banho, completaria estas manobras e as repetiria em número de três, totalizando quatro. Número par.
Tomou banho. Vestiu-se. Tomou o pequeno-almoço engasgado na pressa do atraso, tirou as pantufas que ainda aqueciam os pés e calçou umas botas castanhas. Pegou no guarda-chuva, limpou os pés no tapete de entrada à saída e correu para a estação.
Fernando saiu das aulas e piscou os olhos. Uma vez devagar, para aliviar a vontade de os piscar. Depois outra devagar também, levemente, e duas vezes seguidas rápidas, com força, franzindo o nariz numa expressão em que as sobrancelhas pareciam estar a ser engolidas pelos próprios olhos, assim como toda a pele em volta. O comboio chegou à estação, entrou e pigarreou duas vezes Hram Hram!, tosse e pigarreia mais duas Hram Hram!, e três vezes tosse novamente, forçando para compensar o desequilíbrio que o deixa tão nervoso e desconfortável. Chega a casa. Esfrega a sola das botas no tapete para não encher a casa de terra porque ainda hoje a mulher-a-dias andou a aspirar. Lava os dentes enquanto o Diabo pisca quatro vezes o mesmo olho e mais quatro o outro, dá um beijo rápido à mãe e diz que vai buscar a namorada, combinaram ir jantar fora hoje, que ela chegou a Lisboa no expresso das 12h30 e ainda não se viram. Pega rápido nas chaves do carro e sai porta fora, limpa os pés no tapete e levanta um pouco de pó que sente tocar-lhe no nariz. Danado do pó!, Fernando dilata as narinas duas vezes e mais duas depois de uma pausa de 2 segundos. Número par.
Entra no carro e fecha a porta Trás! Eterna preocupação de quando entra no carro, volta a abrir a porta e fecha-a Trás! com um pouco mais de força, não vá ela ter ficado mal fechada. Não é preciso, sabe-o Fernando, mas mesmo assim faz sempre o mesmo. É como limpar os sapatos no tapete ao sair de casa. Mete a primeira, ponto morto e, vício copiado do pai, abana o manípulo de um lado para o outro, quatro vezes faz isto e volta a pôr a primeira. Agora tem a certeza de que entrou bem. Da primeira também tinha entrado…
São 19h00 e é já noite escura, a luz do Inverno não perdoa. O vermelho do semáforo e dos stops empresta mais cor ao amarelo dos candeeiros que, naquele momento, predomina sobre todo o colorido daquela estrada. Pisca quatro vezes os olhos no ritual sem força e com força, duas vezes duas vezes, senão fica desconcentrado e não é capaz de pensar em mais nada enquanto não concluir o equilibrar daquelas piscadelas. Dá por isso a meio das piscadelas: aproximam-se do seu carro, vindos de não sabe onde. São quatro, número par. A garganta, qual filme de Hollywood ou vida real, seca-se num instante e leva-o a pigarrear. Quatro vezes, caramba, tinha de ser, número par. Esfrega rapidamente quatro vezes os dedos, as unhas quatro vezes empurradas enquanto olha para o semáforo e pede que passe a vermelho, cruzando-se agora com o pensamento de arrancar enquanto o verde não chegou ainda.
Em menos de quatro vezes esfregar as unhas e perder tempo, abrem-lhe a porta do condutor. É só um. Os três ficam atrás, à espera. Fora do carro, deitado no chão, pontapés em número que não se contou, bastonadas, cuspido com desprezo, filho da puta e cabrão berrados com pronúncia que já não se sabe bem classificar. Como pode, arrasta-se para o carro e tenta tirar uma faca que está por baixo do assento. Vêem isto os quatro e não hesitam no que fazem. Uma meia preta, grossa, acerta-lhe na nuca e racha o crânio sob o cabelo curto. Mais quatro, e mais quatro, e mais pancadas, e pancadas quatro mais umas quantas, mais quatro e já Fernando não as conta desde a primeira.
Cristina olha para o relógio. Oito e quatro. Um quarto de hora atrasado mais quatro minutos. E o Fernando que nunca se atrasa para nada, nunca perde tempo algum senão aquelas fracções de segundo em que hesita no que faz por querer ceder àquelas manias, aqueles viciozinhos de repetir as coisas, aquele seu jeito obsessivo e compulsivo mas é engraçado, é jeitinho dele, não é doença...
Jorra a nuca espapaçada alimentando a poça que se alarga no chão. A meia encharcada caída ao lado. Lá dentro, uma bola de bilhar. Vermelha lisa, o três. Número ímpar.

João Pedro Nunes
2 Jan. 2008

Para quem estiver curioso: 6ª feira, dia 4 de Janeiro, na TSF, às 19h15, Grande Reportagem "Loucura consciente", sobre o transtorno obsessivo compulsivo.


Comments:
O que eu acho acerca do texto já sabes... o que acho de ti, por vezes podes esquecer... e, assim, te digo, também para quem quiser ler, que és o meu orgulho...

Amo*te...
@*@*@*@
 
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