Este Blog foi um programa de rádio The Steadfast Tin Soldier: Manuscrito encontrado atrás de um piano

sábado, janeiro 20, 2007

 

Manuscrito encontrado atrás de um piano

Passeando pela blogosfera nacional, fui dar com o blog tonalatonal, do compositor Sérgio Azevedo. Comecei a ler o blog e a visitar os arquivos até que me deparei com um texto que me prendeu bastante a atenção: chama-se Manuscrito encontrado atrás de um piano, escrito pelo compositor em 2001. Pedi autorização ao autor para o colocar aqui no blog, e cá está ele. É um pouco longo e será o post mais comprido alguma vez publicado no steadfasttinsoldier, mas vale bem a pena ler, believe me:

Os textos reunidos neste volume foram descobertos de forma assaz bizarra. Não é a primeira vez que faço de Indiana Jones, um professor Jones amador da musicologia é certo, mas o que me esperava desta vez surpreendeu-me deveras. Surpreendeu-me porque não percebia como, nesta era de informação rápida e de meios de comunicação eficazes e quase omnipotentes, estes textos tiveram não só de esperar a hipotética morte do seu autor (autora?) para aparecerem à luz do dia como ainda por cima, e até nova descoberta, permanecem anónimos. Que havia sem dúvida uma vontade de os fazer publicar algum dia, tal parece-me evidente na minúcia de certas indicações rabiscadas pelo desconhecido autor em folhas anexas aos textos. Ao mesmo tempo, estes encontravam-se numa desordem tal que, ou não previam realmente uma ordem específica ou o autor ainda não se decidira por uma ordenação final, principalmente no que respeita aos aforismos. Também o facto de estarem escritos em alemão obrigou a um esforço de tradução no qual tentei, sendo fiel ao espírito dos textos, substituir as diversas coloquialidades "tedescas" pelas suas equivalentes portuguesas.
Mas regressemos ao princípio. No Outono de 1998 recebi um telefonema, já ia adiantada a noite. Uma voz masculina, enrolada como se o seu proprietário não possuísse dentes alguns, perguntava-me se estava a falar com o senhor de tal (pronunciou o meu nome). Depois da minha resposta afirmativa, quis no entanto ainda assegurar-se que era mesmo eu. Desconfiado de alguma manobra publicitária ou de alguma marosca estive quase a desligar, mas um certo tom de tristeza na voz do velhote (sim, tinha já percebido que se tratava da voz de um velho, sem dentes) fez-me desistir e manter o telefone junto às orelhas. Disse-lhe pois o que ele queira ouvir e perguntei-lhe por minha vez o que pretendia àquela hora tardia. Perguntou-me se não me importava de o ir ver ainda naquela noite (e atirou-me com uma morada obscura, algures nos arredores de Lisboa). O pedido, tenho que confessá-lo, e como decerto concordarão os leitores, não era nada razoável; não só nada sabia do velhote (enquanto ele parecia saber bastante mais da minha pessoa) como não sabia ainda o que me podia querer um estranho a essas horas da noite. Insisti em que me dissesse o assunto que o levava a importunar-me, mas declinou, respondendo simplesmente "que era do meu interesse". E mais não disse. Já irritado, mas ainda assim curioso (Ah, Jones, Jones!) anotei a morada que ele me repetiu de forma um pouco mais inteligível e saí para a noite, preparado para o que desse e viesse, não sem antes ter deixado recado a alguns amigos a dizer onde ia. De propósito não levei cartões nem dinheiro salvo o estritamente necessário para qualquer percalço com o carro.
A rua que me indicara o velho (posso chamar-lhe "o velho", tão pouco dissera o nome) era difícil de encontrar e de aspecto bastante desleixado. Quando saí do carro, ao fim de mais de uma hora às voltas por ruelas todas iguais, alguns gatos mientos e famintos rodearam-me as pernas. Toda a rua cheirava a peixe podre e restos de comida. A luz do lampião era amarela e mal deixava ver os números da portas que ainda os ostentavam; - como faria o carteiro? - perguntei-me enquanto tentava perceber onde estavam os dois algarismos que procurava. Não havia luz em nenhuma das exíguas janelas, e hesitei ainda antes de tocar àquelas horas a uma campaínha que podia não ser a do velho sem dentes. Por fim o meu dedo pressionou o botão no andar que me havia sido indicado. Escapuli-me para o lado e preparei-me para desaparecer caso não fosse aquele o número (sabe-se lá se não podia aparecer um matulão irado a pedir-me contas pela interrupção injustificada do descanso nocturno! - naquelas imediações tudo tinha um aspecto perigoso). Mas nada disso apareceu. Passados apenas alguns segundos acendeu-se uma luz amarelada do lado de dentro e ouvi um ruído de passos abafados em direcção à porta, que se abriu sem perguntas. Era esperado, não havia dúvida. O velho (não tinha um único dente, confirmei) mastigou "boa noite, entre, entre" por entre as gengivas vazias, fechou devagar a porta, e caminhou à minha frente pelo corredor fracamente iluminado. Vista do lado de for a, a casa era humilde e parecia pequena, mas por dentro, embora pobremente mobilada, parecia surpreendentemente espaçosa. Não tanto o tamanho das divisões, que mal podia avaliar (as portas encontravam-se quase todas fechadas e a débil luz mal permitia ver o que escondiam as poucas entreabertas, embora parecesse tudo muito velho e cheio de poeira), mas o número de portas pareceu-me excessivo para o que vira de fora. Enquanto caminhávamos ia dizendo algumas frases de circunstância às quais as gengivas do homem respondiam com ruídos que mais tarde identifiquei como "espere um pouco, espere um pouco, deixe-me sentar". Notei que tossicava de vez em quando e que o andar era hesitante e irregular. Tresandava a tabaco e a bagaço ordinário. Parecia estar doente.
Chegámos por fim a uma sala ligeiramente mais confortável do que o que me fora até aí dado ver. Indicou-me um sofá ainda não totalmente carcomido pelo uso e pelo tempo. Sentei-me com um ar importante mas ao cruzar as pernas reparei que com a pressa calçara um par de sapatos diferentes, de cores absolutamente contraditórias, com a pressa em sair de casa confundira-os no lusco fusco do hall. Encolhi vergonhosamente os pés para baixo do sofá e o ar impertigado desvaneceu-se enquanto rezava para que o velho não reparasse. Não reparou, ou pelo menos fingiu que não, descontraí-me um bocado; ao fim e ao cabo que interessava? Puxou de um maço de cigarros cortados no filtro, ofereceu-me um, perguntou-me - sempre com aquela voz mastigada e triste - se queria uma bebida, e declinei ambos, após o que começou a falar. Em resumo, pedira-me para o visitar por causa de outra pessoa, a quem arrendara um dos quartos, um músico estrangeiro. Nessa altura arrebitei os ouvidos, pressentia alguma coisa interessante. Esse músico - continuou - (sabia que era músico porque mandara vir com as outras bagagens um violino e um piano vertical, ao que assenti que assim era provavelmente, mas durante meses nunca o ouvira tocar sequer uma nota) procurava um quarto barato para trabalhar numa obra importante, e reparara no anúncio posto nalguns jornais pelo velho sem dentes. "A reforma não dá para muito, e uma companhia, mesmo de um estranho é sempre uma companhia; compreende, não é verdade?", ao que assenti novamente. A princípio estivera para não lhe alugar o quarto embora tivesse sido o único possível locatário que depois de ver a casa aceitara ficar - "não gosto muito de barulho, compreende não é verdade?" - mas o músico prometeu-lhe, num péssimo português, que não notaria sequer a sua presença. "Também achei isso esquisito, percebe? Se não eram para tocar para que queria ele então o piano e a rabeca?" - assegurei-lhe que nem sempre os músicos são intérpretes, compositores por exemplo, e que se podia ter certos instrumentos apenas pelo amor aos instrumentos, tal como se têm quadros. Deitou-me um olhar desconfiado e continuou a falar. Certo foi que o músico ("deixe cá ver, agora reparo que nestes meses que aqui esteve nunca me disse como se chamava, tratei-o sempre por senhor e ele senhor a mim me tratava. Sabe, não costumo apresentar-me. Esquecem-se-me os nomes, é a idade, e para não ter de decorar os dos outros declino o meu…" - com um aceno de cabeça fiz que sim, que compreendia) cumpriu o que prometera. Como já me dissera antes, durante meses o locatário não tocara no violino nem no piano embora há algum tempo tivesse ouvido alguns sons abafados vindos deste último, sons "que não pareciam música, tenho de lho dizer, e olhe que eu ouço bem". Quanto a vida social, o inquilino mal saía, somente para almoçar e jantar, por vezes nem isso, ficava por comer. Uma vez ouvira umas exclamações em voz alta numa língua que não conhecia "devia ser aquela língua dele, para mim é chinês" (sei agora que era alemão) e entrara-lhe no quarto, sem bater. Encontrara o músico lavado em lágrimas com um livro nas mãos, o livro tinha umas imagens, "pareceu-me Nosso Senhor na cruz", mas não tivera tempo para perceber bem o que eram - "Ficou danado, gritou-me que saísse e fechou-me a porta nas costas com força, mas danado fiquei eu por ser posto fora na minha própria casa". Depois, é claro (deitou-me uma piscadela de olhos), você compreende, o dinheirinho que pagava, embora pouco, era-me preciso e, verdade seja dita, pagava sempre a tempo e horas!" (não sabia como, pois não percebia do que vivia o estranho até àquele dia em que uns homens de bigode, "à século passado", lá foram a casa e sairam com o violino debaixo dos braços. A pouco e pouco os escassos outros pertences do homem, como um belíssimo relógio de ouro de bolso - "sabia que o tinha antes porque o vira várias vezes tirá-lo do colete para acertar as horas, e depois de uma das visitas dos “bigode” nunca mais o vi a verificar as horas por ele, arranjou um barato, daqueles de pulso ordinários, de plástico" - também desapareceram até não restar mais que alguma roupa, alguns livros, e o pesado piano). Pelo que percebi, o estranho possuira, para além das roupas, do piano e do violino, carradas de livros e partituras (a descrição pelo velho "daqueles livros amarelos sem bonecos na capa e com risquinhos horizontais e bolinhas pretas lá dentro, que parecem caganitas de mosca" não me deixaram dúvidas sobre o objecto que visava), relógios, uma ampulheta magnífica, trabalhada à mão, entre todo um bricabraque heteróclito ( o velho sussurrara-me logo "marionetas, máscaras, caixinhas de música estranhíssimas, um labirinto de madeira feito à mão, não sei para que o queria, parece um brinquedo de crianças"), todo um monte de tralha que o velho tivera a oportunidade de observar uma vez só, quando o homem o convidara a tomar chá com ele no quarto e lhe mostrara então todas aquelas coisas, comentando-as ao mesmo na sua língua bárbara e incompreensível e entrecortando as "explicações" com risinhos que se dirigiam mais a si mesmo que ao velho, confuso com todo o disparatado non-sense que lhe enchia a melhor divisão da casa.
Neste ponto, interrompi a narrativa do velho. Tinha sede e sentia os olhos aflitos pelo fumo do tabaco barato que lhe saía pelo nariz e pelas gengivas na minha direcção. O velho, interrompido na sua dissertação quase sonhadora tossicava agora o seu catarro para fora com a ajuda de um bagaço de qualidade duvidosa que fora buscar a um armário. Afinal, perguntei levemente irritado, para que me estava a contar tudo aquilo, o que tinha aquilo a ver comigo, por que razão me chamara ali a meio da noite, a mim, um desconhecido, e como sabia tanto sobre mim? (afastado o receio de um roubo ou outra chatice - o ambiente era declaradamente estranho mas inofensivo, e uma marosca, embora ainda não totalmente posta de parte parecia-me demasiado rebuscada e inventiva para aquilo que eu podia valer - aborrecia-me agora a maneira como o velho dispunha do meu tempo sem se fazer rogado na lentidão com que contava tudo aquilo enquanto fumava os seus cigarros de tuta e meia).
"Foi ele que me pediu para o chamar cá" - mas onde está ele agora? - "não sei, foi-se embora, morreu, vieram buscá-lo - se calhar os homens de bigode, uma dívida talvez - olhe, não sei, sei apenas que ele me disse que se não voltasse dentro de dois ou três dias para o chamar a si, ainda tenho praí o papel que ele me deu, e já lá vai quase um mês. As coisas dele ainda lá estão como as deixou. Quer dizer, as coisas, as coisas…o piano! Foi o que restou dele". - Mas porquê eu? Não sou assim tão importante, além do mais tenho a certeza que nunca conheci esse seu músico. - "só sei aquilo que ele me disse para fazer". - Mas o que é que ele lhe disse para fazer? - "disse-me que se alguma coisa lhe acontecesse, se eu nunca mais o visse, para contactar esta pessoa (passou-me um papel amarrotado para a mão onde pude ler numa caligrafia antiquada o meu nome e telefone), isto é, você". - Mas que me poderia ele querer? - "Pergunta-me você? Eu sou só um pobre velho que aluga quartos e já nem dentes tem para falar como deve ser. Acha que percebo de música?" - Sim, claro, mas nunca o ouviu falar de alguma coisa, dizer alguma coisa que relacionasse com isto? Mas afinal o que é que aconteceu ao seu inquilino? - "Sumiu-se, como já lhe disse. Dois dias depois de o último relógio ter ido, pagou a mensalidade e disse que tinha de sair e não sabia quando voltava. Desconfiei que ali havia gato, mas, você sabe, estava tudo pago e não tinha contrato que o obrigasse a ficar (pagava mês a mês), que eu cá não gosto dessas coisas, você compreende, não é verdade? (sorriu, e quando sorria mostrava as decadentes gengivas) - Claro, a casa é sua, mas olhe, são quase 4 da manhã, você talvez não tenha sono - "os velhos nunca têm sono" - Sim, eu sei, mas eu não sou velho, você que me desculpe, e quero ir para casa meter-me na cama que amanhã trabalho e não é pouco. Se ele não lhe disse nada a não ser o meu nome é porque deve ter deixado aí alguma coisa importante e queria que eu viesse cá vê-la. "Sim, é também o que eu penso, mas o quê? Já quis dar a volta ao quarto dele mas não sou coscuvilheiro e não quis abusar, afinal o quarto está pago até ao fim do mês e ainda faltam alguns dias", respondeu o velho numa voz que traía a mais que evidente evidência (perdoe-se-me o pleonasmo) que já devia ter inspeccionado o quarto de alto a baixo. Não dissera o músico para me chamar ao fim de dois ou três dias? E já lá ia quase um mês, segundo o velhote. Ou não conseguira encontrar nada ou não havia nada para encontrar. - Vamos lá então ver esse quarto, pode ser?
O quarto em si não tinha nada de particular. Era grande, como dissera o velho, mas estava quase vazio e coberto de pó e livros espalhados por toda a parte. Haviam sinais evidentes de ter sido revistado recentemente (pelo velho, claro…), mas o pó tornara a cair e assentara novamente de forma desigual. O fraco mobiliário consistia numa cadeira e num sofá, uma mesa simples e ampla que decerto servira de secretária com mais alguns dos livros que o músico não conseguira ou não quisera vender, um armário com roupas que já haviam sido de qualidade mas que agora se encontravam desbotadas e traçadas, e o piano, um monstruoso Bösendörfer vertical de 1924, também com livros espalhados por cima. Experimentei as teclas, estava surpreendentemente em óptimo estado, e afinado. - Aqui não há nada. Viu as gavetas do armário e dentro dos livros? - "Já lhe disse que ainda aqui não entrei desde que ele se foi embora", a voz do velho soprava irritação pela minha incredulidade perante a sua palavra e deixei cair o assunto - Ok, então vamos lá ver isto melhor, procure dentro das gavetas do armário, nos fundos, dentro dos bolsos dos casacos e calças que ainda restam aí dentro (indiquei-lhe o armário como se ele não soubesse já perfeitamente que nada lá havia de interesse). Embora o quarto não tivesse, como já disse, quase nada, durante uma boa meia-hora esforçámo-nos os dois, eu meio desinteressado por saber que já tudo havia sido remexido e o velhote cheio do afã de me mostrar que ainda ali não entrara, por encontrar alguma coisa. Os livros, que vasculhei página a página, ainda eram em grande número; estavam cheios de anotações nas margens e com rabiscos por baixo das frases ou palavras que tinham chamado a atenção do seu proprietário: livros de Kleist, uma História Universal do Diabo, o Love's Labour's Lost e The Tempest de Shakespeare, os Fausto de Goethe, Marlowe e Mann, antologias de poesia portuguesa, provençal, espanhola e catalã, os Gesta Romanorum, poemas de Dante, Klopstock, Platen, Keats, Brentano, Blake e Verlaine, o Livro do Apocalipse, um curiosíssimo Tratado das Borboletas e Crisálidas e os não menos invulgares Sobre os Labirintos e Manual de Doenças Venéreas (?) juntamente com mais meia dúzia de volumes com reproduções de Durër e Bosh (entre os quais O Jardim das Delícias) no meio de alguns outros chamaram-me a mim a atenção (o velho deambulava por entre estas resmas de papel, para si inúteis "Não sei ler nem escrever muito bem, apenas o suficiente para poder ler o seu nome e chamá-lo cá", disse com alguma vergonha). Todos eles, de uma maneira ou de outra vinham mencionados no Doktor Faustus de Thomas Mann, esse romance da vida de um compositor, Adrian Leverkhün, que vende a alma ao Diabo em troca do génio e de uma vida privada de calor humano, em suma, pela frieza. Em paralelo, Mann retrata o caminhar da Alemanha para a destruição através da ascenção do nazismo com a consequente guerra e a demolidora derrota que se lhe seguiu. Porque estaria o nosso músico tão interessado no assunto? Talvez quisesse escrever uma ópera sobre o romance. A ideia não tinha nada de extraordinário, Manzoni escrevera uma há alguns anos e eu próprio já o pensara. Ao fim e ao cabo, é o sujeito ideal, um livro sobre a vida de um compositor atormentado pela sua criação, o carácter demoníaco da música, descrição de obras nunca ouvidas, etc e etc. Ideal.
Dentro dos livros não havia nada, as próprias anotações eram interessantes mas não acrescentavam nenhuma pista ao mistério do seu desaparecimento ou ao propósito dos seus últimos meses de vida (partia já do triste princípio, que até agora ainda não se desmentiu, de que o músico tinha definitivamente entrado para o reino de Hades).
Olhei à volta, meio desapontado. As roupas nada tinham dentro a não ser alguns papéis de mercearia, os livros tão pouco. Nas gavetas apenas pontas de lápis, canetas com a tinta meio seca, algumas folhas pautadas e um mata-borrão. Seria uma brincadeira de mau gosto? Mas a mesma dúvida que já me assaltara antes desvanecia-se perante o imponente piano em bom estado e a evidente dificuldade de o mover sem a ajuda de alguns homens fortes (como raio o teriam metido lá dentro?). Demasiado esforço para uma brincadeira, e além disso teria custado uma pipa de massa arranjar aquilo tudo para gozar com alguém. Não, aquilo era real, e se o misterioso inquilino existira e escolhera aquele lugar infecto para viver os seus últimos meses, longe de tudo e de todos, alguma coisa devia existir que o justificasse. Olhei outra vez em volta, procurando sem esperança um qualquer local onde não tivéssemos já rebuscado e remexido fartamente. Mas claro! O piano! O pesadíssimo piano! Era evidente que o velho sozinho nunca teria tido forças para arrastar o Bosendörfer e verificar se havia alguma coisa escondida atrás dele. Nem rodas tinha o raio do piano! (e não devia ter quem o ajudasse, na sórdida solidão em que vivia naquele bairro fantasma no fim do mundo. O músico devia ter sido a sua única companhia durante aquele tempo todo). O olhar do velho acompanhou o meu enquanto o pousava inquisidoramente no piano e percebeu. Murmurou algo como "é escusado, é muito pesado para se mexer do sítio onde está", e antes ainda que eu esboçasse um gesto defendeu-se "eu sei o que está a pensar, mas já lhe disse três vezes que não mexi em nada. Vi quando o trouxeram para cá, eram 6 homens fortes e transpiravam como porcos enquanto o metiam aí nesse canto". Abanei que sim com a cabeça e tentei deslocar o piano que não se moveu um milímetro. Se houvesse alguma coisa lá atrás estava bem segura, pensei desanimado. - Tem uma lanterna? - "Oh!". Lembrei-me que tinha uma no carro e disse ao velho para esperar um minuto enquanto a ia buscar. Quando voltei o velho beberricava o seu bagaço sentado no sofá e olhava fixamente para o monstruoso móvel. O que esperaria ele que de lá saísse? Dinheiro, jóias? A pouca lealdade que a fugaz convivência com o locatário de poucas falas e tantos mistérios ainda provocava no velho desvanecia-se a pouco e pouco à medida que crescia a esperança de eu encontrar alguma coisa de valor enquanto me via, de joelhos no soalho do quarto, apontar a lanterna para o exíguo espaço existente entre o piano e a parede. "Vê alguma coisa?" - Não, espere lá… - O velho, curioso como todos os velhos, tentava espreitar também, mas os seus olhos de bolsas avermelhadas e húmidas, decerto tão maus como as gengivas, não lhe prestavam um bom serviço e acabou por desistir, sentando-se de novo no sofá. O pó de muitos meses, encorajado pelas minhas explorações espalhou-se pelo ar e fê-lo tossir novamente, uma tosse de mau agoiro. Estava mesmo doente e nesse momento tive alguma pena dele.
Não havia muita luz no quarto e a lanterna era fraca. Pareceu-me ver folhas caídas no chão, entre o piano e a parede, e algumas por baixo. Era natural que o músico, se fosse compositor e usasse o piano deixasse de vez em quando cair folhas que estivessem por cima da tampa (uma placa de madeira grande que servia de apoio para escrita na estante de leitura do instrumento fizeram-me acreditar que era isso mesmo). Enquanto estudante, quando ainda usava o piano para compôr, era frequente resmas de folhas irem parar atrás do piano, mas no meu caso, este era bem mais leve e as rodinhas facilitavam a recuperação dos "preciosos" esboços. Lembrei-me então que havia uma possibilidade. Voltei novamente ao carro, fazia frio e arrepiei-me um pouco enquanto tirava o macaco da mala (deviam já ser umas seis e tal da manhã, mas estávamos no Outono e não haveria luz do dia antes das oito e meia, além disso havia uma forte neblina). O velho desta vez dormitava, afinal sempre lhe dera o sono, e não acordou enquanto eu tentava sem êxito meter o apoio do macaco debaixo do piano. Era demasiado pequeno para conseguir meter lá fosse o que fosse que conseguisse levantar aquele monstro. Estava quase a desistir, e a hora avançada (na noite anterior também dormira pouco) começava a toldar-me o espírito e a amolecer-me os intentos e a curiosidade. Sentei-me na cadeira e penso que também passei uns minutos pelas brasas. O piano aparecia-me inexpugnável, derradeira fortaleza de um homem singular. Não seria possível um segundo Cavalo de Troia para meter - oferecido no altar da cupidez dos defensores - diante da ponte levadiça? Acordei de repente. Era isso! Uma ponte levadiça. Estes pianos verticais tinham no bojo, por baixo do teclado, uma porta horizontal que se abria e revelava o interior. Era assim que se arranjava o mecanismo dos pedais, ou se mudavam cordas. E tão pouco me lembrara - ó, grande besta! - da tampa de cima, coberta como estava pelos livros amontoados. Embora não deixasse ver até ao fundo, pelo meos podia servir para esconder coisas na parte de cima. Tirei os livros de cima e pu-los no chão, levantando mais uma nuvem de poeira que fez tossir desalmadamente o velho, acordando-o. Quando acabou de tossir, ainda meio estremunhado, ficou a olhar para os livros no chão e para a tampa levantada. "não sabia que isso levantava", o tom era de azedume. - Também aqui não há nada, tenho de abrir a tampa de baixo - "O quê, em baixo também se abre?", e desta vez o tom era de perplexidade, decerto não imaginava que as teclas estivessem ligadas a um complexo mecanismo invisível que tornava possível o som. - Dê-me aí uma ajuda, isto deve ser pesado, apoie-se na madeira para isso não me cair em cima dos pés quando puxar a maçaneta - "Já vou, já vou". Aquilo devia ter algum truque porque rodei, puxei e torci a maçaneta com quanta força tinha e nada. "Isso se calhar não se abre", atirou-me o meu companheiro e nesse momento, como que por vingança, lá fiz qualquer coisa que por acaso libertou a maçaneta do seu casulo e fez cair pesadamente a tampa em cima das costas do velho. Distraído com os meus esforços, não se encostara como eu lhe dissera e apanhou uma pancada surda nos lombos que fez vir à superfície dos pulmões mais um ataque de tosse valente e algumas gemidelas. "Diacho! Tinha de puxar assim sem avisar? Olhe que para males já tenho que bastem com a merda deste peito e destes olhos, não preciso ainda de uma corcunda!" - desculpe, isto estava perro como o raio, também não serve de nada queixar-se agora, estou aqui porque você me telefonou e também estou farto de levar com o pó e o fumo do seu tabaco. - "pronto, pronto, desculpe, mas que doeu, doeu. E não foi a si. Veja mas é se há aí dentro alguma coisa que valha a pena, para podermos ir dormir". A grande e pesadíssima porta de madeira saía toda do piano e foi a custo que a pusemos no chão. Lá dentro, com a ajuda da lanterna e da pálida iluminação do candeeiro no tecto (o quarto era interior, não tinha janelas, imaginem o cheiro…) vasculhei atentamente o interior do instrumento. Fora arranjado há pouco tempo a julgar pela afinação e pela condição do teclado, mas as entranhas pareciam não ter sido tocadas desde 1924. Rolos de pó cinzento cobriam as traves de madeira e as cordas pareciam ferrugentas nalguns pontos. Apontei a lanterna para o fundo e percebi que o piano não tinha costas porque alguém tinha retirado a placa do fundo (provavelmente para arranjar espaço entre a parede e as cordas para esconder alguma coisa), aí estava a razão para haver tanto pó lá dentro. E estava alguma coisa lá dentro. Pilhas de folhas manuscritas começaram a aparecer dos fundos mais sombrios onde a luz mal chegava (as pilhas, para cúmulo, estavam no fim). Tirei todas as que pude e pedi ao velho para ir à cozinha buscar uma vassoura - tem vassoura, não tem? - "sim, sim" - traga-ma para aqui para ver se chego às lá do fundo. - "vou já". Com o auxílio da vassoura e de algumas arranhadelas nos braços consegui, penso, retirar todas as folhas que repousavam no estômago daquela Moby Dick musical (aquele piano cada vez se parecia mais com um enorme animal de entranhas esventradas e eu um minúsculo Jonas prestes a ser engolido). Limpei o pó às folhas cuidadosamente (mais um ataque de tosse do velho) e sentei-me no sofá para ver o que continham. O velho, sentado na cadeira a escarrar para um grande lenço vermelho imundo que tirara do bolso, olhava para o piano aberto como se esperasse ver de lá aparecer um saco de diamantes; era óbvio o seu desagrado, "tanto barulho por umas páginas de papel com rabiscos!" (à segunda resmungadela de decepção lembrei-me do Much Ado About Nothing; o velho devia ter lido o seu Shakespeare!).
As primeiras trinta e tal folhas embora completamente desordenadas, continham nas margens indicações pormenorizadas sobre alguns significados, contextos, e outras observações que seriam muito úteis em caso de publicação. Tratava-se de um conjunto de aforismos ou sentenças que denotavam uma grande reverência pela espiritualidade ligada à arte, em especial à arte da música. O seu autor era sem dúvida um homem culto e tinha uma formação humanista. Nenhum estava numerado e o todo visava fundamentalmente a pedagogia. Na grande tradição alemã, o autor dos aforismos ligava vários domínios do saber a um objectivo único, a quente formação espiritual e humana do músico em paralelo com a formação puramente mecânica dos músculos, mais fria. Pu-los de parte e analisei as outras folhas (o velho dormitava outra vez, decerto convencera-se que nem sequer um mapa do tesouro podia esperar do papel amarelecido que eu folheava com avidez). Algumas delas, soltas do resto do manuscrito, continham poemas em alemão, entre os quais alguns dos Sonetos Venezianos de Platen. Não tinham, alguns deles, escrito um nome que identificasse o seu autor, mas supus terem a mesma origem que o resto da papelada. Não só o idioma e o tipo de letra eram iguais (mais distinta e menos apressada a caligrafia aqui e nos aforismos, apressada e quase ilegível em tudo o resto), como os poemas sem autor denotavam o mesmo tipo de sensibilidade e interesses que os revelados pelos aforismos. Fiquei até enlevado (orgulho patriótico…) por a poesia de Cesário Verde não lhe ser estranha. O estrangeiro estivera pois tempo suficiente em Lisboa para se inteirar da cultura lusa e a simplicidade e calor humano de Cesário, tão próximo da música de Janacék, devia tê-lo emocionado. Não creio porém, (embora os tenha reunido e traduzido para figurarem neste volume já de si tão heteróclito) que os poemas estivessem destinados a verem algum dia a luz do dia. Posso (agora) afirmar com bastante certeza que tanto os aforismos como os poemas são cronologicamente anteriores, na sua sensibilidade meridional (e, no caso dos poemas, serão mesmo juvenilia) ao material que encontrei no segundo rolo manuscrito.
Falei há pouco em calor e humanidades. Falarei agora em frieza. O segundo conjunto do manuscrito, separado por um elástico enrolado, tinha a ver, como já suspeitara ao folhear os livros no quarto, com o projecto de uma ópera sobre o tema do Fausto. Concretamente sobre a vida de Adrian Leverkhün tal como narrada pelo seu amigo Serenus Zeitblom, ou seja, o Doktor Faust de Thomas Mann. Se os aforismos eram interessantes (só lera alguns mas aquilo prometia), as notas sobre a ópera lançaram alguma luz sobre o estranho inquilino que fora para aquele buraco acabar de trabalhar nas obras de Adrian. Sim, nas obras de Adrian. Ao folhear os papéis tornou-se-me claro que ao projecto de uma ópera sobre Doktor Faust, por muito ambicioso que fosse, se sobrepusera um projecto com características muito mais inquietantes, que podiam eventualmente explicar o mistério do desaparecimento do seu autor. Nas primeiras páginas o músico desaparecido (vou chamar-lhe K., já que tudo aquilo me parecia um pouco kafkiano), nas primeiras páginas, K. propunha-se pôr em música não só todo o enorme romance, o que daria como resultado uma ópera gigantesca, uma "LebenOper", como ainda se propunha pôr-se na pele do protagonista, pensando e sentindo como ele, compondo aquilo que ele compunha e passando por todos os seus angustiantes dilemas à medida que a obra avançava e a frieza ia tomando conta da sua vida. Ulisses transladado para o Faust. Não teria a ópera menos de 7 ou 8 horas de duração e implicaria pois que todas as obras descritas no romance existissem de facto. (ainda antes de continuar esta narrativa, convém dizer ao leitor que o manuscrito estava escrito em alemão, um alemão um pouco arcaico - à imagem do estilo de Adrian e de Serenus - mas um alemão facilmente compreensível para mim). As folhas iniciais continham, entre outras anotações, a lista de composições e estudos de juventude de Adrian, de forma mais ou menos cronológica, lista que traduzi para a língua portuguesa [reproduzida neste volume].
O projecto, já de si um pouco utópico, e até (porque não dizê-lo), com contornos menos sadios do ponto de vista mental, continuava com uma cópia pormenorizada das descrições por Mann das peças de Adrian. Estava tudo anotado, não só as descrições como ainda a maneira como as obras haviam sido recebidas pelo público e os comentários sobre elas por parte dos restantes protagonistas do drama. K. tentara extrair do romance toda a informação possível e adivinhar o resto através da sua própria experiência paralela. (ao chegar a este ponto da minha própria narrativa sinto ainda hoje um leve arrepio, quando penso no Tratado das Borboletas e Crisálidas e no Manual de Doenças Venéreas insidiosamente pousados por cima do piano. Até onde chegara K. na sua obsessão?). Não era esta uma loucura gémea do Quixote de Pierre Ménard contado por Borges? Mas desta vez o papel onde se escrevia o segundo Fausto em tudo igual ao primeiro era a vida de um homem e a tinta o seu próprio sangue…
Cheguei ao fim das páginas, mas estas somente continham mais e mais indicações do mesmo género sobre o romance. Nada de música. Era desanimador por um lado nada encontrar que provasse que K. tinha realmente levado a sério a sua própria demência. Provavelmente dera-se conta a tempo e num último rasgo de lucidez pusera-se ao fresco, deixara aquele antro e o velho sem dentes e simulara uma desaparição enigmática para despistar quaisquer seguidores. Não, não fazia sentido. Mais valia ter-se pisgado sem nada dizer e nada deixar para trás. Porquê comportar-se como a mulher de Lot? E porquê o bilhete a solicitar a minha presença? K. pretendia revelar alguma coisa, talvez os aforismos apenas, quem sabe. Mas então, porque juntara o projecto do Fausto? K. queria pelo menos um espectador no espectáculo da sua vida e morte e, por razões obscuras, escolhera-me a mim (claro, tinha de ser um músico, o imbecil do velho nunca compreenderia nada do que estava implícito naquelas páginas terríveis). Falo do velho. Continuava a dormitar e a sonhar com tesouros fabulosos deixados atrás do piano, mapas que indicavam o "x" onde arcas cheias de ouro estavam enterradas à espera das suas ávidas e salivantes gengivas.
Tinha de haver mais alguma coisa.
Levantei-me do sofá, o dia já raiava (uma luz branca entrava pelo corredor em direcção à porta do quarto) e espreitei mais uma vez para a carranca aberta do Bosendörfer mas não havia nada. Se havia partituras tinham de estar ali; aquilo não fazia sentido. Tive vontade de desmontar a merda do piano martelo a martelo. - Olhe, vou desmontar-lhe o teclado, não se importa? - "humm, hummmmm, grmlhmmmm", o velho grunhiu e continuou a resmonear coisas ininteligíveis (era John Silver e olhava para as peças de três; resolvi não me chatear mais com ele, o seu sorriso estúpido de sonhador era quase infantil). Desmontei cuidadosamente a tampa do teclado e os martelos e todo o mecanismo do duplo escape ficou à mostra, como gengivas cheias de dentes ameaçadores (o velho certamente ficaria invejoso de uma dentição tão generosa, vê-la-ia quando acordasse). Nada à vista porém, por isso desmontei também o que restava da pele do piano, a tampa vertical por cima do teclado. Mal a retirei, uma folha in-quarto rasgada e meio amachucada caiu e esvoaçou para o meio do chão. Apanhei-a e olhei sofregamente para ela. Era um fragmento de uma peça para orquestra de cordas, uma peça não incluída na lista porque fazia parte da peças descritas por Mann como um dos exercícios de estudante de Adrian para Krehzstmar. Eu tivera o pressentimento certo, havia uma partitura! Adrian/K. continuara com o projecto para além das folhas iniciais sabe-se lá até onde, e por qualquer razão aquilo correra mal (não era muito difícil perceber as razões pelas quais um tal projecto podia e devia correr mal). É claro que, sendo K. compositor, aquele fragmento podia ser de outra peça qualquer, mas a ideia não tinha lógica (dentro da não-lógica ou lógica demoníaca da LebenOper). K. não se teria mudado para ali para fazer "outras peças". O fragmento que me ardia nas mãos pertencia de certeza ao Projecto (referia-me a ele já assim, com maiúscula, porque era por demais evidente que a minha admiração pela desmesura clamava por um epíteto que justificasse a mescla de realidade e ficção com que K. sonhara naqueles últimos meses de uma actividade psíquica difícil de imaginar). O estado de exaltação com que aquele fragmento de música (e por extrapolação toda a hipotética ópera) fora escrita estava bem patente na caligrafia apressada e inclinada para a frente, como se o tempo escasseasse (lembrei-me que o velho tinha falado numa ampulheta, seria apenas coincidência? O Diabo que aparece a Adrian e lhe oferece 24 anos de criação genial usa a imagem da ampulheta para lhe explicar o fluir do tempo; a princípio não damos conta de nada enquanto a maior parte da areia escorre, até que um pequenino vórtice se forma e é tudo tão rápido a partir daí. Nascemos e já estamos a morrer, e quando nos apercebemos do inevitável fogem pelo ralo os derradeiros grãos de areia, a nossa vida desperdiçada). Era porém admirável de invenção e de "maitrise". As próprias correcções, se bem que denunciadoras de dúvidas e da sofreguidão com que K. criara aquela música, tinham vigor e mostravam determinação. Pertencia sem dúvida, pelo estilo tonal extremamente cromático, aos exercícios de contraponto tonal que em breve conduziriam Adrian para um caminho singular. Mann menciona entre os exercícios deste período um Concerto para Cordas, pelo que não me foi difícil adivinhar que o fragmento se referia à tentativa de recriação dessa obra apenas mencionada pelo nome e colocada num contexto no qual Adrian ensaiava a sua libertação da tonalidade através do cromatismo desviante das funções tonais. Ou seja, para ser claro (e aqui arrepiei-me outra vez), o fragmento pertencia ao ponto no qual, no romance, Adrian renuncia ao amor e ao calor humano e recebe o Diabo e a frieza no seu seio e no seio da sua obra. No último compasso dos três que sobreviveram à fúria destrutiva de Adrian/K. (tenho agora a convicção que, levado por um último arremedo de sanidade e por uma última tentativa de voltar ao calor cristão, K. destruíu toda a música que compusera, todo o trabalho de uma vida, excepto este pequeno fragmento que ainda tenho comigo, que escapou miraculosamente), os tons inteiros insinuam-se na tonalidade já fortemente cromatizada. Os sons D - E - G# (note-se particularmente o trítono D - G# [o Diabolus in Musica] a envolver o agregado) dominam e dominarão por certo o seguimento no crescendo que é pedido cada vez com maior insistência pelas febris e constantes indicações escritas a italiano na partitura. Deste trítono entre as notas D e G# (Dieu, Deus, Deo, God, Gott…?) diz-me uma intuição terrível ser a imagem da luta que se desenrolava no interior da alma de K pela libertação de uma teia onde decerto nunca pensara pudesse vir também a cair. Passara K. da ficção para a realidade e buscava o Altíssimo em todo o lado, incluindo na velha simbólica musical anglo-saxónica e tedesca?
Talvez este fragmento não tenha sido deixado para trás acidentalmente. Tenho para mim, cada vez mais, a ideia que Adrian/K. deixou deliberadamente para trás na sua fuga desesperada à aventura em que se metera uma pista que mostrasse a quem soubesse ver (por isso me escolheu a mim, um músico) aquilo que poderia ter sido (ou foi) o Projecto. A passagem terrível do conforto tonal para a inquietação atonal era evidente naqueles três compassos e simbolizava a passagem de K. do mundo normal em que vivia antes de o Projecto o dominar por completo para o limbo desconhecido onde agora estaria.
Sem acordar o velho que continuava a dormir, deixei ficar o piano como estava e cuidadosamente enrolei novamente no elástico os dois rolos de papel. Pelo menos, pensei, os aforismos pertencentes a uma época mais apolínea e menos dionisíaca de K. estavam a salvo, e quanto ao resto, logo se veria. Ainda não havia procurado nos outros quartos nem no pequeno quintal por trás da casa. Ficava para outro dia. Eram 10 da manhã, já estava mais do que atrasado para os meus cursos e não tinha preparado nada. Meti os rolos no sobretudo, surripiei um pequeno volume de poemas de Platen que estava aberto por cima da secretária, e saí, fechando sem ruído a porta por trás de mim. O carro continuava no mesmo sítio (naquele local tudo podia acontecer, e um rato de automóveis era bem menos invulgar que a história que escondiam as paredes do número (…) daquela rua), meti a chave na ignição, pegou à terceira e arranquei, decidido no dia seguinte. Mas isso nunca aconteceu. Ao pegar de manhã no jornal, li nas notícias locais que um violento incêndio tinha completamente destruído duas casas em (reconheci o nome e o número) e morto alguns velhotes. Acidente ou Destino? O imbecil do velho deixara-se dormir com o cigarro aceso enquanto eu lá estava, mas a beata apagara-se sozinha nos seus dedos calejados. Devia ter feito o mesmo no dia seguinte mas ter tido menos sorte e eu não estava lá para lhe apagar a merda do cigarro. Com a casa velha forrada de madeira por todo o lado não me admirava muito se a tese "acidente" fosse afinal a verdadeira. Senti alguma pena pelo homem, fosse como fosse não tinha culpa de ser um pobre diabo. Devia sobreviver com uma reforma miserável e a mesada de K. fora uma benesse.
Tudo isto me parece hoje um sonho de uma noite mal dormida e olho por vezes o meu fragmento de Wanderweg (baptizei-o assim, e não me perguntem porquê, é todo um outro romance) para me convencer que tudo foi, afinal, real. A lembrança do fogo, aumentada pela imaginação, atormenta-me por vezes de noite e sonho que volto lá e salvo do pasto das chamas um volume grosso que contém a maior música de sempre, mas de todas as vezes acordo só para perceber que os meus desejos secretos continuam vivos no inconsciente. De qualquer modo, tenho a certeza que já nada havia para encontrar naquela casa. E se houvesse? Resistiria eu ou outro mortal à audição de uma obra marcada pelo sopro diabólico da obsessão por um personagem de ficcção possuído pelo Demo? A julgar pelo fragmento "de estudante", as obras de maioridade da LebenOper de Adrian/K. deviam ter sido terrivelmente belas, insuportavelmente belas. Desde essa noite não consigo deixar de me lembrar do verso de August von Platen, sublinhado num dos livros por cima da mesa de trabalho de K. (agora aberto à minha frente):

- Quem olhou a Beleza olhos nos olhos, sem o saber, está já destinado à morte…

@ by Sérgio Azevedo 2001


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