terça-feira, janeiro 30, 2007
Açúcar e canela
Costuma passear por Lisboa, admirando a cidade. Invariavelmente a pé. Quase sempre à noite, quando os olhares menos o incomodam e quando menos incomoda os olhares. Esta noite passeia-se por Belém. Sustém-se nas paragens de autocarro, olha os caixotes do lixo, tentando ser discreto (mas, afinal, nem se importa muito se acaba por o ser ou não) enfia um braço lá dentro. Num dia de sorte talvez tacteie o resto de um queque, um pão semi-mordiscado à pressa, um chocolate que ficou pela metade. Tira-o para fora do caixote, cuidadoso, alheio aos espectadores que, sentados na paragem e quantas vezes de barriga cheia, acham tudo aquilo um nojo. Nojo, também, sente-o ele por ter que comer estes restos do lixo de outros, mas a fome fala sempre mais alto. Além do mais, os que vivem na calçada não podem ter nojo - isso é luxo para quem não dorme ao relento.
Passam por ele, indiferentes, cegos, não o vêem, dois jovens. De casacos quentes, luvas, cachecol, falam do concerto no CCB. Entram nos Pastéis de Belém. Saem, fartos, gula saciada, de pastéis na mão e na boca, simples doces que não lhes saciam a fome - que não têm - mas que tornam mais leve o espírito e a carteira - que têm. Os olhos negros seguem-nos e recordam um passado que já quase se apagou da memória, de há anos sem conta, que talvez não sejam tantos assim mas que pela dureza com que passaram se converteram numa vida inteira, um passado em que ele pôde comer pastéis de Belém. Sente-lhes o ligeiro travo do limão, o creme doce e quase líquido, sente o açúcar e a canela. Decide-se: antes de o frio da noite e o vento soprante lhe congelarem a vida ainda comerá um pastel de Belém.
Volta para o seu lar, dois cartões estendidos a um canto abrigado da aragem nocturna, uma manta que se vai desfazendo aos poucos. Por companhia tem um rádio de bolso velho, estragado, que funciona só quando está de bom humor e quando os caixotes do lixo guardam tesouros como pilhas ainda não totalmente gastas. Adormece.
Acorda. Segue a rotina de todos os dias: passeia-se por alguns lugares. Aqui e ali, em escadarias do metro, senta-se de mão estendida. Repetirá esta rotina por quatro dias, em que apenas gastará o dinheiro que lhe deixam na palma esticada no pão que não pode deixar de comer e no vinho de que não abdica. Ao fim dos quatro dias tem no bolso, economizados, poucos cêntimos a mais dos oitenta que custa o pastel. Promete a si próprio: durmo, amanhã de manhã acordarei para ir comer um pastel de Belém.
Dia seguinte, um Domingo, 9h da manhã, Pastéis de Belém, uma multidão comprime-se dentro da pastelaria para serem os primeiros a comprar pastéis acabados de fazer - chegarão para todos e ainda hão-de sobrar, mas todos querem ser os primeiros. O gorro azul escuro, esburacado, sujo, velho, luta também para poder gastar os seus oitenta cêntimos tão bem poupados num único pastel. Puxa, empurra, dá uso aos cotovelos e consegue chegar à caixa, no meio de toda aquela gente que o continua a empurrar e a puxar. O olhar da rapariga que o atende não esconde a surpresa de ver aquele gorro azul escuro, esburacado, sujo, velho e aquela barba por fazer. Diz, profissionalmente, sem no entanto mudar o olhar com que o percorre do gorro à camisa desfraldada, que o balcão e a gente aos empurrões não permitem olhar até aos sapatos gastos:
- Faça favor...?
E responde timidamente, não conseguindo ocultar alguma vergonha que nem ele próprio sabe explicar:
- Um... - e estende as moedas que já guardava na mão.
- Açúcar e canela?
O "sim" surge como um ligeiro aceno da cabeça, repetido três vezes, quase imperceptível, vergonha que ainda não consegue explicar mas que entende porque vive com ela todos os dias. Estende-lhe o pires a rapariga, sobre o pires o guardanapo, assente no guardanapo um pastel de Belém, sobre este o açúcar e a canela polvilhados em desordem. Mais gente que entra, pouca a sair, ele pensa em ir-se embora para não empatar mais - que essa é a tal vergonha: sente-se constrangido por estar no meio dos que