Ontem à noite fui assistir a uma ópera infantil chamada Pollicino (O Pequeno Polegar), de Hans Werner Henze. A razão para o "palhacinhos" é simples: muitas das crianças (já sei que vou receber alguns comments a reclamar sobre isto das "crianças"... ;-P) que participam na ópera são alunos do IGL, e o Prof. Armando decidiu dar-lhes a carinhosa alcunha de Palhacinhos... Palhacinhos, Pollicino... You get the point...
Ora bem, estava eu a dizer... Fui ver uma ópera infantil, e gostei! É giro, embora não seja propriamente algo para a minha idade. No entanto, houve algo que me deu um enorme gozo, e que não foi o facto de ter visto a Laura vestida de Senhor Mocho com um fato semelhante a um ovo Kinder e umas patas que pareciam ter sido arrancadas ao Poupas Amarelo, nem o facto de o Afonso estar vestido de Senhor Lobo (Mau) e cantar extensas e complicadas árias como "Pois..." e "Palavra de Lobo...", nem o facto de um dos putos não conseguir tirar parte do fato de esquilo na altura dos agradecimentos, nem o facto de o Senhor Ogre não saber cantar, nem sequer o facto de a Leonor ter guinchado "Vamos brincar às escondidas!" no meio do palco. O que deve ter sido bastante constrangedor, porque ela teve que continuar em palco e enfrentar as caras daquelas crianças tão cruéis, autênticos carrascos de 8 anos. O que me deu mais gozo foi entrar na sala MEEESMO antes de o espectáculo começar, quando a orquestra já estava no fosso (LOL esta expressão tem piada...), e ver imensas crianças à volta do fosso de orquestra. Se calhar era só a infantil curiosidade de ver aquelas pessoas lá em baixo, vestidas de preto, com instrumentos na mão, mas a minha inocência levou-me a pensar que seria por estarem interessadas na música. Não era. O que me agradou foi mesmo ver tantas crianças numa ópera infantil. Mesmo infantil, é ópera, é música, e quase aposto que pelo menos uma daquelas crianças que lá estavam vai, um dia, estudar música "a sério" e vai, pelo menos, considerar seguir uma carreira como músico. Há também um lado de crítica social presente na obra. Recordo-me de duas situações: a primeira, quando o pai de Pollicino diz algo como "os patrões não cumprem nada do que prometem, tal como algumas pessoas que todos nós conhecemos". (Está tudo dito, não está? Para crianças de 7 ou 8 anos, talvez não...) A segunda situação está muito bem disfarçada: quando Pollicino e as suas irmãs são apanhados em casa do Ogre, sentam-se à mesa para jantar e engordarem, para que este as possa comer. Pollicino senta-se junto ao Ogre, e há uma altura em que este lhe toca na perna. Pollicino afasta-se e o Ogre começa um recitativo em que diz "Estou farto de passar a vida a comer crianças..."
Além desta vertente de crítica social, a ópera teve um carácter claramente político. O autor, Hans Werner Henze, era um militante de esquerda, e isso reflecte-se em Pollicino: o Ogre simboliza a institucionalização (um Ogre sindicalizado, que recebe telefonemas de pessoas importantes para combinar jantaradas com outros "grandes", como o Terrível e o Diabo) e o fascismo, contra o qual não se pode lutar. Outro símbolo do fascismo é, segundo o Nuno, o dono das terras onde trabalhavam os pais de Pollicino - a classe operária, o povo oprimido - que não lhes paga mas exige o trabalho; há um diálogo curioso, logo no início da ópera, em que a mãe de Pollicino pergunta ao pai porque é que não vai pedir o dinheiro ao dono das terras, e este responde que, se o fizer, não o deixarão mais trabalhar nas suas terras: é a obrigação do povo, a escravização do proletariado, o triunfo da classe imperialista sobre a classe trabalhadora, "manda quem pode, obedece quem deve". Pollicino representa, naturalmente, a revolução contra o estado totalitário e a emancipação dos oprimidos; a cena da passagem do rio com as filhas do Ogre simboliza o triunfo do socialismo e a libertação do povo da escravatura. Assim, temos em duas personagens centrais (Pollicino e o Ogre), segundo a teoria marxista, as classes fundamentais de uma sociedade capitalista. Uma outra prova da orientação de esquerda presente nesta peça é o desfecho: Pollicino e os irmãos, não matam o Ogre fascista e roubam o dinheiro que levarão aos pais e, assim, com o dinheiro do Ogre, ficarão ricos e nunca mais abandonarão os filhos... Não! Isto, além de violento, é um comportamento capitalista, cujas intenções finais são enriquecer à custa de terceiros. Em Pollicino, o herói e as suas irmãs, assim como as filhas do Ogre que fugiram de casa, atravessam a floresta e deparam-se com um rio difícil de atravessar. No entanto, com a ajuda uns dos outros, atravessam o rio e, como por magia, as filhas do Ogre (pequenas "ogras") transformam-se em meninas normais. O cenário modifica-se e a tempestade que se abatia sobre o grupo de heróis revolucionários dá lugar a uma Primavera florida, em que todos cantam uma música de intervenção cuja letra inspira confiança no futuro, de punho esquerdo fechado e erguido, t-shirts vermelhas com a cara do Che Guevara e bandeiras do PCP. (Não é bem assim, mas é quase...)
Uma última nota, extraída directamente do programa distribuído à entrada:
Até onde poderia ir sem utilizar as palavras de Henze, que desejava com humor que Pollicino, Clotilde e os seus irmãos "fundassem uma comuna, plantassem tomates e fumassem haxixe"?
P.S. - O Pollicino tem 13 anos.
Avante, Palhacinho, Avante!
# pintado por JoaoPedro @ 14:44